Provavelmente serei um cultor da morte sem me aperceber
Tínhamos
estado juntos uma vez nos 33 andares. Acabava de lançar “Como um Louco
ao Fim da Tarde”. Nessa manhã, Marcelo Panguana, como um “guia
turístico” nos levaria por uma lenta caminhada por esse seu livro que
parecia começar do fim. Essa ideia repete-se constantemente.
referimo-nos à sua tendência para a morte – quase sempre a começar –
como já o tinha feito em “O Chão das Coisas”. Para esta entrevista,
libertamo-nos dos seus fantasmas – mais nós do que ele – e
embrenhamo-nos para a criação da nova literatura moçambicana. Era
preciso sair dos seus livros para encontrarmos a ideia do autor e a
construção da nova literatura moçambicana sem o cansado discurso de
gerações. “Quando és bom és bom!”, determina ele como quem diz não nos
cansem com essa história de conflitos de gerações. Marcelo Panguana,
mesmo com uma tendência de sublinhar a classe de diferentes autores e
“corrigir-nos” em relação a Suleiman Cassamo – “ele [Cassamo] não é
cronista, é fotógrafo” – não foge ao debate. Entra nele com toda a
classe como se reflecte também nos seus livros. Nega ser historiador,
mas socorre-se do “tempo” – como elemento de história – para nos falar
de influências da América Latina, assim como de cá da terra como “o
grande Rui Nogar e Luís Bernardo Honwana, o pai da ficção moçambicana”
na nossa literatura. Podíamo-nos alongar num discurso feito de uma
literatura banhada de sangue. Para Marcelo, não é só de sangue que se
faz a nossa literatura, apesar dos seus autores terem vivido as guerras
de resistência, de libertação e dos 16 anos. “Não é só de sangue que se
faz a nossa escrita!”, lembra este escritor que alguns acreditam ter
sido abençoado pelos deuses ronga.
Alguém
escreveu na contracapa de “O Chão das Coisas” que Marcelo Panguana
nasceu abençoado pelos deuses rongas. Como é que os deuses rongas
decidem abençoar alguém para se transformar num cultor de palavras?
Não
me considero uma pessoa abençoada pelos deuses rongas, talvez me
considere um escritor protegido por esses deuses. Muitas vezes, em
algumas intervenções minhas, faço questão de reivindicar o meu lado
ronga e o transformar num estandarte, numa forma de batalha contra
qualquer coisa. Sinto que podemos aproveitar as grandes riquezas que
existem nas etnias deste país, pegar isso e transformar em produto
literário muito rico. As grandes literaturas universais tornam-se
sensacionais quando têm essa capacidade de fazer aproveitamento do lado
cultural, do lado étnico e espalhar essa riqueza pelos seus livros.
Levanta
aqui a questão do “local”. Muitas vezes, quando ouvimos o discurso de
unidade nacional parece sobrepor-se à ideia de local, do
grupo. Quando partimos para nos identificar como “locais” rongas, macuas
ou bitongas não estaremos a abandonar essa ideia de unidade?
A
Frelimo, Samora ou movimento de libertação de Moçambique tinham um
slogan muito bonito que dizia “unidade na diversidade”. Eles tinham
consciência, já nessa altura, que a unidade nacional, como um todo, parte
de muitas parcelas. Uma riqueza cultural parte de uma série de riquezas
individuais. Penso que não se parte absolutamente nada quando se
reivindica “ronguismo”, “changanismo” ou “macuanismos” se é que assim se
pode dizer. Nós temos que ser qualquer coisa antes de sermos um todo.
Da mesma forma que o grande conceito que anda agora que é a globalização
parte de particularidade de cada espaço geográfico, não pode existir
sem Moçambique se integrar com a sua cultura. Um país só se pode tornar
culturalmente forte se tiver a capacidade de explorar a riqueza de cada
etnia.
Se
transportarmos essa ideia para a literatura, como é que o escritor vai
explorar essas particularidades? Ele partirá do geral para o particular
ou fará o inverso?
Agora
o que está na moda, principalmente na Europa, é o romance histórico,
porque os europeus descobriram que é preciso ir buscar a história para
enriquecer o presente. Nós, em Moçambique, estamos a entrar por essa
via. Estamos a criar alguns livros de ficção histórica interessante.
Podemos falar do caso de Ungulani que é mais conhecido através do
“Ualalapi” e muito recentemente através de “Choriro”; podemos também ir
buscar a literatura de João Paulo Borges Coelhos.
Estes dois autores fazem-se valer pelas suas formações em história…
Acho
muito bom que, tanto Borges como Ungulani, explorem o lado de serem
historiadores porque, se reparar, estamos quase um pouco órfãos da nossa
história. A nossa literatura quase que viaja pouco pela nossa história.
Acho preocupante porque as novas gerações ficam um pouco a flutuar
neste universo muito dominado pela literatura ocidental. É preciso que a
gente crie uma literatura com muita história, buscar Ngungunhana;
buscar os conflitos entre os dois irmãos moçambicanos. É bom que as
novas gerações descubram isso e saibam que temos história rica, de modo a
que possam ter os pés assentes no chão e possam avançar.
Para
além de uma literatura de história, também se está a fazer um regresso
ao tradicional. É uma forma de solidificarmos a nossa identidade ou é
medo de avançarmos para outros tempos mais universais?
Nem
uma coisa nem outra. Acho que os escritores escrevem aquilo que
viveram. Enquanto não esgotarem essas vivências que foram muito
profundas, eles não vão dar salto. Acho que só vão dar salto para um
outro tipo de escrita, para outras abordagens, depois de esgotarem essas
vivências. Eu escrevo muito sobre o passado. Reconheço que escrevo
muito sobre as zonas suburbanas onde nasci e cresci. Escrevo muito sobre
o curandeirismo, sobre esse lado obscuro da realidade moçambicana,
porque penso que é o que me marcou e que vai marcar a minha realidade
como homem. Não posso de maneira alguma me desligar disso. É muito
forte. Recordo-me uma vez quando diziam alguns críticos que a literatura
moçambicana estava cheia de muito sangue. Isso tinha muito a ver com o
percurso que o escritor moçambicano teve numa determinada época
histórica. Quando tivemos guerra, estávamos a crescer como escritores.
Bebemos muito dessa guerra, então os nossos livros nunca podiam estar
isentos dessa abordagem. Vivemos muito e escrevemos muito sobre isso até
que esgotamos e passamos para outro tipo de abordagem. Vai reparar que
os próximos livros a serem têm tendência a falar dos novos tempos. Por
exemplo, posso citar o livro que, por coincidência, fiz o prefácio, de
Romão Cossa, “A Ministra”, que é uma abordagem mais contemporânea e com
outros problemas.
Estamos, com “A Ministra”, perante um rompimento com o passado?
Nã é um rompimento, é um casamento entre os dois mundos. O modo
como o mundo moderno tende a sufocar o tradicional. A “Ministra” tenta,
de certa maneira, reivindicar a nossa ancestralidade, dizer que não
devemos, de maneira nenhuma, esquecer o nosso passado, mas sim fazermos
casamento entre esse passado e as novas tecnologia. “A Ministra”
enquadra-se nesse novo tipo de escrita que faz abordagens mais ou menos
contemporâneas. Aborda o passado como forma de questionar o presente.
Quando se refere ao
comentário da crítica em relação ao sangue na literatura moçambicana,
esse dado não estará relacionado ao facto de a nossa história, pelo
menos até ao princípio da década de 1990, ser marcada por guerras?
Depois dos 10 anos de guerra de libertação seguiram-se 16 anos de
guerra, para não falarmos de conflitos entres os reinos.
Não
sou historiador e tenho fraca memória em termos de números, mas posso
tentar inventar dizendo, por exemplo, que nos últimos 35 ou 40 anos o
nosso país foi um palco de guerra; foi um palco de conflitos e nós em
qualquer momento não pudemos abdicar dessa realidade. Mas não quero ser
pessimista e dizer que a nossa literatura está cheia de sangue. Há outra
literatura que está cheia de outras coisas bonitas. A literatura de
Eduardo White está cheia de muito amor, muito erotismo; a literatura de
Songare Okapi está cheia de muito amor; a literatura de
Mbate Pedro está cheia de muitas propostas e abordagens sociais
interessantes; temos literatura de um jovem extraordinário que é Andes
Chivangue que é um prosador por excelência. Temos mesmo a literatura de
Suleiman Cassamo…
…. que é um cronista brilhante.
Acho
que Suleiman Cassamo não é cronista, não é escritor, é um fotógrafo que
usa a escrita para fotografar a nossa sociedade. E é um bom fotógrafo.
Claro, não se fala muito dessas pessoas. A gente fala pouco das coisas
que são nossas, fala pouco dos nossos escritores.
A questão está apenas em falar-se pouco dos nossos autores ou tem também que ver com a sua capacidade de afirmação?
Vejo
essa questão de afirmação de um escritor na sociedade pelo lado de
marketing. Estamos numa sociedade em que alguns artistas se tornam
famosos pela grande capacidade que têm de usar marketing. Infelizmente a
maior parte dos grandes artistas não tem essa capacidade de fazer
marketing. o dom que eles têm é de fazer cultura. Infelizmente, por
causa dessa condição, se tornam artistas pouco conhecidos, pouco
divulgados e o seu trabalho muito pouco reconhecido. O marketing na
cultura é um caso sério. O livro é um produto como pão e sabão, tem que
se vender e para se vender é preciso marketing. Infelizmente, nem sempre o marketing serve para divulgar os bons artistas
A
nossa literatura, desde sempre, foi construída nesse desafio de
divulgação, rompimento com o passado e uma nova reconstrução. Não será
Marcelo Panguana fruto dessa reconstrução e de diversas influências?
Tive
a sorte de fazer parte de uma geração literária que surge precisamente
na altura que nasce o país, o que me leva a dizer que a literatura
moçambicana tem a mesma idade que o país. Dizia que tive a sorte de
nascer como escritor na altura em que estávamos a tentar desenhar os
traços através dos quais se poderia, eventualmente, criar a nova
literatura moçambicana. Numa geração que incluía Pedro Chissano, Eduardo
White, Hélder Muteia, Tomás Vieira Mário, Armando Artur, Paulina
Chiziane e Ungulane Ba Ka Khosa. Trata-se de uma geração
que nasceu do movimento literário chamado “Charrua”, que, aliás, não foi
o único. Na altura existiam muitos movimentos como a “Forja”, liderado
por Castigo Zita, o “Eco” que era liderado por Inácio
Chire, Hélder Muteia e Daniel da Costa. tivemos uma revista que tinha
seu espaço na UEM… existiam muitos movimentos literários e todos nós
tínhamos a preocupação comum, que era criar a nova literatura
moçambicana. Apesar de poucos instrumentos intelectuais para termos essa
ousadia, criámos (a nova literatura), com todos os erros que existiam.
Criámos a literatura moçambicana que agora temos; criámos as primeiras
páginas literárias, os primeiros suplementos culturais nas revistas e
nos jornais da altura e criámos, sobretudo, esta nova forma de escrever,
naturalmente influenciados por grandes escritores como Jorge Amado,
Hemingway e todos os escritores latino-americanos. Também fomos
influenciados por alguns escritores moçambicanos, caso de
Luís Bernardo Honwana - que é o pai da ficção moçambicana -, caso de Rui
de Noronha, Rui Knofi, Orlando Mendes e o grande Rui Nogar. São os
autores que nos influenciaram e através dos quais fomos capazes de dar
um salto para criarmos uma literatura nova e sermos capazes de fazer uma
ruptura entre a literatura de combate, que se fez durante o período da
guerra de libertação, para criarmos outra literatura que fosse mais
sonhadora, mais universal, mais… mais louca!
Fala
de rompimento com a literatura de combate. Depois desse movimento que é
constantemente simbolizado pela “Charrua” surge uma outra geração mais
jovem. Como é que olha para o que é feito pela nova vaga de autores?
Sente que é uma continuação ou eles também vem romper com o que foi
feito pela “Charrua”?
Sempre
fui contra um certo pensamento que, muitas vezes, se divulga, tentando
falar-se de literatura através de idade. Ou tu és bom ou não és!
Independentemente de seres desta ou da outra geração, ou tu és ou não és
bom! Coloco as coisas dessa maneira. Não acredito no conflito de
gerações, em termos artísticos, não existe. Acho isso uma
construção de pessoas que tentam nos entreter, tentam nos desviar da
questão fundamental que é criar uma literatura ou uma cultura
moçambicana de facto. Isso para dizer que encaro com naturalidade o
surgimento de outros valores literários como Lucílio Manjate, Songare
Okapi, Mbate Pedro e tantos outros que todos os dias vão surgindo no
nosso universo literário. Isso indica que estamos num bom caminho,
porque uma literatura não se faz com uma determinada geração, faz-se com
escritos de cada pessoa de todas as gerações e de todas as
criatividades.
Isso tem também a ver com influências?
Não
me influenciei por ninguém. O primeiro grande livro que li foi a
bíblia. Tenho uma forte educação religiosa. Li muito a bíblia e outros
escritos religiosos em língua ronga e é, por isso, que domino bem o
ronga tanto escrito como falado. Sou um grande defensor da religião,
porque acho que, neste mundo em que os homens perderam confiança nas instituições e nos líderes políticos, só sobra a religião para poder manter o equilíbrio.
Em
“Como um Louco ao Fim da Tarde” assim como em “O Chão das Coisas” há
uma permanente referência à morte. Qual é a sua relação com a morte?
Há
certas coisas que a gente faz inconscientemente. Agente só faz e não se
apercebe. Quando pensei em escrever estes livros só estava preocupado
em contar histórias. Provavelmente o meu inconsciente foi mais forte que
outras coisas. Penso que a morte, de certa maneira, é uma realidade
sobre a qual não nos podemos alheiar. Não sei por que é que pode ser
considerado um caso interessante falar da morte se ela é
tão interessante como a própria vida. Falar da morte é como falar de
amor; da vida; da esperança das outras coisas. É parte integrante da
nossa existência. Não podemos tornar a morte um tabu, uma coisa que não
se pode abordar. Como diria um escritor que não me lembro o nome, às
vezes é preciso falar da morte para exorcizar a parte negra, triste e
nebulosa que traz a morte. Provavelmente serei um cultor da morte sem me
aperceber.
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